Revolução Emergente

O movimento coletivo de apropriação dos seus direitos e desejos provocado pelo acesso às tecnologias digitais é literalmente revolucionário. 

Tempo e escala diferenciam a evolução da revolução. As revoluções implicam em transformações rápidas e em grande escala enquanto a evolução tende a ser lenta e se concentrar em alguns aspectos específicos. Uma revolução ocorre quando se altera de uma hora para outra a ordem do que estava acomodado. Um fenômeno parecido com as malas de viagem. Uma vez que seu conteúdo é manipulado, o volume aumenta inexplicavelmente e mesmo que nada novo tenha sido adicionado, simplesmente o que estava lá encaixado na ida já não cabe mais na volta. 

Assim, quando as pessoas por meio das tecnologias hoje largamente difundidas como celular, internet e redes sociais passam a ter mais acesso à informação e, ao mesmo tempo, ganham a autonomia para expressar suas opiniões, a revolução acontece. 

Essa interação entre a tecnologia e os indivíduos gera resultados imprevisíveis que não são explicáveis como simples resultados da soma de ações individuais porque ganham volume exponencial. Ou seja, essa massa de indivíduos age exatamente como a sociobiologia descreve como ‘fenômeno emergente’ e que segue a definição química e física como algo que ocorre quando muitos agentes simples operam em um ambiente, formando comportamentos complexos no coletivo. O resultado em si é normalmente imprevisível, e acaba acarretando a evolução do próprio sistema. 

O mesmo se dá no cenário comportamental onde interações homem/máquina individuais alteram profundamente os destinos da sociedade como um todo, e também de maneira inesperada e imprevisível. 

O mundo pós-digital permite que algo inédito na história ocorra: uma revolução que acontece de baixo para cima – literalmente emergente – que afeta todos os aspectos da vida humana tanto na escala individual como social e que deve provocar a maior, mais profunda, mais completa e mais rápida mudança de atitude de que se tem registro desde o começo dos tempos. Uma verdadeira revolução. 

Até agora, todas as revoluções foram até certo ponto manipuladas por uma elite qualquer que usavam as aspirações das pessoas e o eventual descontentamento com a sua situação para incutir ideias e conquistar apoio para realizar uma mudança rápida. Foi a partir do discurso de lideranças que ocorreu a mobilização popular que finalmente resultou na Revolução Francesa e a Revolução Russa, ambas de caráter político. Na Revolução Industrial, o aspecto revolucionário estava na rápida transformação do modo de produção, que alterou todo o cenário econômico e provocou a mudança nos eixos de poder na sociedade.  

Em sua essência, a tecnologia sempre foi revolucionária. De fato, cada nova tecnologia desenvolvida pela humanidade revolucionou a produção no sentido de que permitiu o ganho de escala de determinada tarefa. Só que como a tecnologia se mantinha sempre restrita ao domínio de poucos, junto com o ganho de produtividade, vinha a acumulação por parte de uns sobre os outros.  

Nessa fase, a tecnologia potencializava a mais-valia porque com menos funcionários podia produzir mais e acumular mais recursos, concentrando renda. O homem vivia a serviço da tecnologia porque, como já mencionamos, ela servia como instrumento de dominação de uns sobre os outros. Essa relação mudou. Hoje, a tecnologia está tão acessível que, finalmente, a relação se inverteu e ela passou a servir a humanidade e não apenas a minoria. 

A revolução que começamos a viver é diferente porque ela ocorre a partir do esclarecimento de cada indivíduo, da visão de mundo que emergiu das suas próprias experiências analisadas em face dos fatos a que ele tem acesso. Não se espalhou a partir de um centro de pensamento, não tem um núcleo ideológico, ela brota de consciência individual e, por isso, prescinde de lideranças. 

Isso ocorre porque, a partir do momento em que uma pessoa passa a ter acesso a todo tipo de informação, ela desenvolve uma mudança pessoal de atitude. Esse indivíduo deixa de aceitar estruturas consolidadas e passa a questionar tudo, a avaliar cada situação a partir da sua perspectiva. Ele passa a ser protagonista da própria História. E mais: deixa de aceitar a vida como ela tem se mostrado até então e exige mudanças. É aí que está a semente revolucionária. 

A revolução que estamos vivendo por conta da ubiquidade da tecnologia está provocando alterações na dimensão individual, de caráter pessoal e emocional, capazes de gerar impactos no processo produtivo e, portanto, na Economia, e que também reverberam na política. Ou seja, é uma revolução em três dimensões: pessoal, produtiva e política. É a primeira ‘Revolução 3D’ da História. 

As revoluções anteriores ocorriam em algum destes campos específicos – seja político ou produtivo – e depois influenciavam o que estava em volta. Essa é a primeira em que a mudança ampla ocorre ao mesmo tempo nas três dimensões porque muda a relação do indivíduo com suas aspirações, muda a forma de produzir e traz mudanças no aspecto sociopolítico. 

Esta ‘Revolução 3D’ é o fato de que ela ocorre de dentro para fora das pessoas e vem da base da pirâmide social para o topo enquanto as outras revoluções que conhecemos representavam uma alteração de fora para dentro ou de cima para baixo. Essa mudança vetorial faz toda a diferença porque implica em consistência e inevitabilidade. 

Quando muita gente pensa e contribui para a formação de um pensamento coletivo isso é chamado de exteligência. Enquanto na inteligência as sinapses ocorrem dentro da cabeça humana com os neurônios, na exteligência existe essa enorme rede onde cada indivíduo contribui como se fosse um neurônio. A inteligência é individual, a exteligência é coletiva. A primeira fica represada na mente das pessoas, a segunda emerge com força por meio de compartilhamentos e criação coletiva. 

Isso tudo foi propiciado pelo digital, que trouxe aumento de repertório e comunicação para fazer com que esse pensamento coletivo se concatene. O mundo pós-digital oferece a possibilidade de arquivar, processar e transmitir todo o conhecimento para as próximas gerações em volumes antes impossíveis. Hoje usamos o cérebro como memória RAM e não como hard disk. Ou seja, não mais precisamos acumular tudo na cabeça e nosso desafio é saber gerir os conhecimentos de que dispomos de acordo com nossa necessidade.  

Finalmente a tecnologia está a serviço das pessoas, o que representa outra inversão de sentido inédita. Desde o princípio dos tempos, o homem tem estado a serviço da tecnologia, sendo subjugado por quem detinha uma determinada técnica produtiva. Quem detinha as tecnologias mais eficientes acabava por concentrar a renda e as diferenças sociais aumentavam em decorrência disso. 

Antes, quem detinha conhecimento se achava mais do que os outros e não era que raro que se encastelasse e guardasse o seu patrimônio intelectual com a mesma volúpia com que o Tio Patinhas guarda moedas na sua enorme caixa-forte. Na era digital, a autoridade intelectual está muito mais na habilidade de compartilhar conhecimento de forma dinâmica do que de mantê-lo de forma estática. Quem amplia o seu repertório cultural não quer guardá-lo, pelo contrário, quer compartilhar isso. Há trocas o tempo todo. As pessoas estimulam e são estimuladas. Ter seguidores significa ter poder. 

A busca por inovação e a generosidade em compartilhar os avanços que vemos nesse milênio está mais alinhada com a atitude de outro personagem, o Professor Pardal, inventor idealista que sempre estava buscando patrocínio do Tio Patinhas, mas que era um visionário não só na área da ciência mas também da nova economia, baseada mais na inovação do que no acúmulo de capital. 

Nunca a máxima cristã do “é dando que ser recebe” foi tão verdadeira no que se refere ao conhecimento na era pós-digital. Não adianta mais saber o que quase ninguém sabe. O que importa é a sua capacidade de compartilhar o seu repertório, de colaborar com projetos maiores, de desenvolver interfaces, de atuar proativamente com seu patrimônio intelectual. 

A boa notícia é que o que vivemos hoje desmente a visão pessimista de George Orwell no livro 1984, em que descreve a figura do Big Brother. A ideia de que existe uma inteligência central e que condiciona cada pessoa a ser apenas um seguidor passivo não se aplica mais. Hoje é impossível controlar completamente os fluxos de informação. Há quem tente, mas esse tipo de dominação da consciência se tornou uma estratégia difícil de manter. Como na internet não existe centro, não existe como domar o fluxo de informações nem como estabelecer verdades tamanho-único. Orwell, que vinha de uma estrutura de pensamento industrial, não tinha como prever isso. 

E a visão de Orwell sobre uma sociedade em que a fonte de conhecimento seria centralizada tem justificativa histórica. 

Há 700 anos, só o clero tinha acesso à informação, que ficava enclausurada nas bibliotecas dos mosteiros e era controlada pela Igreja. Todo o resto da população vivia na mais absoluta ignorância como o escritor e acadêmico Humberto Eco descreveu no seu romance O Nome da Rosa. Naquela fase da história a maioria das pessoas tinha pouco repertório para formular pensamentos complexos e fazia os que os poderosos desejavam: comia, trabalhava e dormia.  

Em 1439, Guttenberg inventou a imprensa e a nobreza passou a ter algum acesso aos livros e as primeiras grandes bibliotecas começaram a ser formadas – tamanha concentração de conhecimento não ocorria há mais de mil anos, desde o incêndio da biblioteca de Alexandria. Nesse período, as universidades começaram a surgir na Europa. Há pouco mais de 100 anos, os ricos passaram a frequentar as universidades. Há cerca de 50 anos, quem morava nas grandes cidades passou a ter acesso à cultura e formação superior e acesso à informação. 

Há 40 anos, com a internet, pesquisadores de várias partes do mundo conseguiram uma forma eficiente de colaborar por meio de uma rede de computadores. Nos últimos 20 anos, desde a criação da world wide web e das ferramentas de busca, qualquer pessoa em qualquer parte do planeta passou com alguns cliques a ter acesso às melhores bibliotecas, inclusive às mais elitizadas como a Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, em Washington, D.C. 

E, desde a virada do milênio, estudantes interessados podem ter acesso às aulas ministradas pelas melhores universidades do mundo por meio de programas de educação à distância. Nos últimos anos, com a internet nos smartphones, essa democratização da informação, do conhecimento e da cultura representa uma legítima revolução, algo sem precedentes na história da educação.  

Mas enquanto a sociedade está subindo para o novo mundo pelo elevador, os políticos estão indo pela escada. O efeito disso é que os representantes do povo estão conduzindo uma sociedade que não conhecem mais, com a qual não interagem como deveriam e que apresenta demandas que eles são incapazes de perceber. 

Essa constatação parece indicar que as estruturas políticas estão à beira do caos. O que não é ruim. Caos não é uma bagunça. É apenas uma organização que a gente não entende. Essa é a definição de caos. O que está acontecendo agora na sociedade, que parece caótico na verdade é apenas uma nova organização que ainda não foi entendida. 

Quando, de repente, um formigueiro muda de lugar pode parecer uma ocorrência aleatória, mas existe uma razão que não está ao nosso alcance entender. É uma situação que se apresenta. A isso se dá o nome de fenômeno emergente, algo conhecido em Física, Química e Biologia e que traduz bem a movimentação social que ocorre a partir da disseminação em larga escala da informação. 

 Como estamos intensamente envolvidos nessa movimentação, temos dificuldade em entender os fenômenos sociais enquanto indivíduos. As transformações são rápidas e cada vez mais imprevisíveis. Inesperadas como as emergências. 

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